Madre Maurina Borges da Silveira, uma freira da Ordem das Irmãs Franciscanas da Imaculada Conceição, foi presa durante o período em que vigorou o Regime Militar no Brasil. A história da madre Maurina revela um ato que reflete o nome dado ao livro escrito pelo seu irmão Frei Manoel Borges da Silveira e o jornalista Saulo Gomes: A coragem da inocência de Maurina Borges da Silveira. Um documentário, Maurina, o outono que não acabou, foi lançado em 2023, contando a história da madre Maurina, dentre outros textos e livros que narram a trajetória da Madre. ap5u
A Madre, mineira de Perdizes, nasceu em 20 de junho de 1924, era procedente de uma família católica com dois irmãos sacerdotes e uma irmã religiosa. Acreditamos que foi um processo natural que ela também escolhesse abraçar a vida religiosa, quando em 1942, entrou para a Congregação das Irmãs Franciscanas da Imaculada Conceição. Acolhida na casa de Araraquara-SP, local em que foi levada por seu pai. Em 1969, foi para Ribeirão Preto onde assumiu a direção do Lar Santana, um orfanato localizado na Vila Tibério.
O Lar Santana era um local de prestação de serviços à população pobre que a Madre dirigia no momento em que os episódios que levaram à sua prisão ocorreram. O orfanato, que também funcionava como escola, foi fundado em 1931 pela Ordem das Irmãs Franciscanas da Imaculada Conceição e esteve de portas abertas à comunidade por cerca de 82 anos, fechando em 8 de dezembro de 2014. Na ausência de familiares ou responsáveis, o Lar Santana acolhia crianças carentes, dando abrigo, instrução e cuidado necessários na infância. O trabalho das irmãs com as crianças carentes era parte do exercício da missão da Ordem das Franciscanas.
Foi no Lar Santana que a religiosa conheceu o Movimento Ecumênico de Jovens ou Movimento Estudantil Jovem (MEJ) que estava instalado em uma das salas do prédio antes da chegada da Madre (Botosso, p. 92).
Na sala usada pelos jovens era editado o jornal O Berro de cunho considerado pelos militares como subversivo por estar alinhado a um grupo contrário ao regime. O jornal era produzido no porão do Lar Santana e constituiu parte da raiz do problema no qual a Madre foi envolvida. O conteúdo publicado estava alinhado aos movimentos mais radicais de esquerda, cuja organização fazia parte um dos membros do grupo de jovens que funcionava em uma das salas do Lar Santana, o jovem Wanderlei Caixe.
Para compreender melhor a prisão da madre Maurina, foi analisado um pouco do contexto político no Brasil. O regime imposto aos brasileiros após o golpe de 31 de março de 1964 mudou a face do país. Uma série de medidas foi tomada em nome da segurança nacional e do repúdio a qualquer situação que pudesse parecer que uma pessoa era próxima do comunismo.
Os direitos dos cidadãos esbarravam na política implantada pelo regime ditatorial. Na ocasião do golpe, membros da Igreja Católica apoiaram em nome do afastamento da ameaça comunista. Mas nos anos seguintes, o regime endureceu aplicando leis como o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, impondo à população brasileira uma restrição com ações arbitrárias, reforçando a censura e a tortura como práticas da ditadura e atingindo também as ações da Igreja por meio da perseguição, intimidação e prisão de seus membros (Fico, 2004).
Em meio ao regime que cerceava a liberdade de expressão da população e abusava da violência física, a Madre foi presa e acusada de subversiva, de participar de um grupo de guerrilheiros de Ribeirão Preto, as Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN). Estava iniciada a saga da Madre, de Ribeirão Preto ando por Cravinhos, depois São Paulo. De São Paulo, foi exilada do país para o México.
A madre Maurina foi presa na porta do Lar Santana em 25 de outubro de 1969. A acusação formal apontava “de encobrir atividades praticadas por militantes da Frente Armada de Libertação Nacional (FALN) e de destruir material considerado de propaganda subversiva” (Gomes; Silveira, p. 61). Uma vez presa, iniciou-se também a intimidação, seguida de tortura em Ribeirão Preto. A religiosa nas mãos dos agentes do Estado ou por sessões que a pressionavam a explicar uma história da qual ela não fazia parte, ou seja, a participação nos movimentos armados contrários ao regime ditatorial no Brasil.
Exercia o cargo de delegado em Ribeirão Preto o Dr. Renato Ribeiro Soares, que junto com o Dr. Miguel Lamano, diante das pressões, a transferiram para Cravinhos. A religiosa foi não apenas submetida a torturas como também lhe negaram um advogado e proibiram visitas.
O arcebispo de Ribeirão Preto, Dom Frei Felício da Cunha Vasconcelos, apesar dos esforços, não conseguiu autorização para visitar a freira. Uma única visita permitida, de forma rápida, sob os olhos dos agentes da lei, a do irmão mais velho da religiosa, padre Vicente.
A Madre foi isolada, os agentes do governo se esforçaram por fazê-la confessar que era amante de um dos jovens que por sua vez era membro da FALN, lembrando que por ocasião da prisão da Madre estava com 45 anos. A recusa dela só agravava as práticas de tortura e a pressão sobre a freira que desconhecia as circunstâncias nas quais foi envolvida, não sabia o teor do jornal, dentre outros fatos. Um dos depoimentos da madre Maurina, ela afirma que os jovens haviam solicitado uma palestra sobre o amor. Ela refletiu: como então eles poderiam ser subversivos? Lembrando que nem todos os membros do MEJ participavam de atividades políticas que foram consideradas revolucionárias.
O arcebispo viu a situação se agravar e sem poder conversar com a madre Maurina e, junto com o clero, emitiu um documento com o título: Posição do Clero Arquidiocesano de Ribeirão Preto. Este documento esclarece a tomada de posição do arcebispo D. Frei Felício César da Cunha Vasconcelos e do bispo auxiliar D. Bernardo José Bueno Mieli, assinado por 69 padres e irmãos da arquidiocese. Trata-se de um posicionamento firme da principal liderança da Igreja Católica em Ribeirão Preto diante dos fatos ocorridos, freira presa, padres e leigos convocados a depor.
A cidade de Ribeirão Preto vivenciava, em 25 de outubro de 1969, a Operação Integrada, formada pelos órgãos da Secretaria de Segurança Pública, dos departamentos da Polícia Civil e Força Pública, da Operação Bandeirante e Exército Nacional, que buscava um grupo considerado terrorista atuante na cidade. A Igreja tentou o diálogo com as autoridades civis e foi repelida com ironias e ameaças de novas prisões (Posição […], 1969).
Qual a atitude da mais alta autoridade da Igreja Católica de Ribeirão Preto? O arcebispo D. Frei Felício César da Cunha Vasconcelos, diante da recusa dos delegados de que ele visitasse a Madre e esclarecesse a situação, diante da notícia de tortura recorrente, fez o que estava ao seu alcance como forma de repúdio e contestação da atitude dos delegados: a excomunhão dos dois delegados Dr. Renato Ribeiro Soares e Dr. Miguel Lamano.
A excomunhão é um ato de censura imposto a uma pessoa católica (como era o caso do Dr. Renato Ribeiro), que a exclui de frequentar quaisquer atos na Igreja, de receber os sacramentos, ou seja, a pessoa fica afastada de vínculo jurídico, religioso e social da Igreja Católica. Parece pouco, mas para quem é católico significa muito. O cumprimento de atos religiosos como a missa dominical, a frequência aos sacramentos, a participação com a comunidade paroquial, tudo isso caracteriza as práticas que compõem o mundo dos católicos e das quais a pessoa excomungada é excluída.
Dom Frei Felício reuniu o clero e escreveu o documento mencionado, repudiando as atitudes do regime, identificando a incomunicabilidade que a Madre estava em Cravinhos, depois sua transferência para São Paulo, dentre outros aspectos afirmando que:
Os membros do Clero (Arcebispos e Sacerdotes) e as organizações católicas da Arquidiocese não têm nenhum compromisso com as posições extremistas e subversivas de direita ou de esquerda. Estamos comprometidos com os direitos fundamentais da pessoa humana, com a Evangelização, com a Catequese, com a Liturgia, com a Educação e a formação das consciências, com a promoção humana […], com os princípios do Concílio Vaticano II, com a Doutrina Social Cristã, com os Documentos de Medellín […] (Posição […], 1969, p. 791).
Muitos padres foram chamados a depor na delegacia. As atividades religiosas nas Igrejas, como as homilias dos padres e as ações sociais caritativas, foram extensamente vigiadas.
O documento esclarece que além da prisão de madre Maurina foram intimados a se apresentar na Delegacia Seccional de Polícia para prestar declarações os padres: Gisberto Antonio Pugliese, Joaquim Corrêa Leandro, Enzo Gusso, Aguimar Luís de Paula Marques, Antonio Geraldo Bassi, Fernando Godat, Emílio Pignoli, Claudio Fávero. Outro grupo de sacerdotes foi acompanhado, de acordo com o documento, “com violência”, por agentes armados a depor: Luís Eugênio Perez, Plínio Toldo, João Ripoli, Aryclenes Rodrigues Barbosa, Angélico Sândalo Bernardino. Os depoimentos foram seguidos de chacotas e ironias e os padres foram obrigados a declarações que nem sempre puderam ser lidas, completadas ou retificadas conforme depoimentos. Os tempos eram difíceis para o Brasil e a hierarquia da Igreja Católica não ficou de fora das perseguições, acusações e prisões.
A reação dos delegados que trabalhavam no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) em São Paulo foi imediata de apoio aos colegas que trabalhavam em Ribeirão Preto. Publicaram no jornal Correio da Manhã, com data de 20 de novembro de 1969, ou seja, uma semana após a publicação da Posição do Clero de Ribeirão Preto afirmando que “[…] vêm de público externar integral solidariedade aos bacharéis Renato Ribeiro Soares e Miguel Lambo, os quais foram arbitrária e despoticamente excomungados pelo Arcebispo de Ribeirão Preto […]” (Posição […], 1969, p. 793). O documento defendendo os delegados acusa que a Igreja se transformou em “convento de valhacoutos, templos em mercado de corruptores, e nefastos inimigos da pátria a serviço do comunismo”.
Todo e qualquer membro da Igreja, seja da hierarquia ou ainda os fiéis, que seguisse o evangelho e/ou os documentos da Igreja como os referentes à Doutrina Social da Igreja, era acusado indistintamente de ser comunista e inimigo da Pátria. A Doutrina Social da Igreja teve seu primeiro documento publicado no final do século XIX, escrita pelo Papa Leão XIII, a Encíclica Rerum Novarum, publicada em 15 de maio de 1891 (Zagheni, 1999). Com ela, a Igreja deu oficialmente os primeiros os falando abertamente de justiça social, dos operários, da relação com o capitalismo e o comunismo, na promoção da paz e do bem estar de todos os homens. A esta encíclica seguiu vários outros documentos da Igreja abordando a promoção humana.
A Igreja buscava caminhos para assegurar a integridade física de seus membros, seja da hierarquia ou dos fiéis. Em seguida ao manifesto de apoio aos delegados, a Igreja lançou para a sociedade uma nota que teve por nome Esclarecimento (Posição […], 1969, p. 793-794) em que estava na defesa dos direitos humanos, rejeitando a violência e assegurando a dignidade humana. No documento, a Igreja Católica deixa claro que não era contrária às ações da polícia, quando estas fossem realizadas em cumprimento do dever, mas seu posicionamento contra toda e qualquer atitude de violência e tortura que pudesse fazer parte dessas ações. Para a Igreja, era uma questão de método, reafirmando sua posição contrária ao terrorismo, à violência e à tortura empregados na extorsão desumana. O diálogo e a paz caminham juntos com a Igreja em “comunhão”, em união com o mundo.
Esta posição foi condenada pela polícia política, uma vez que os tempos difíceis não perdoavam qualquer crítica ao sistema de governo daquele tempo. Não havia liberdade de expressão. Jornais e rádios católicos foram censurados, perseguidos e fechados.
Madre Maurina foi exilada de forma forçada no México, pois ela sempre manteve firme sua postura de provar a inocência diante das acusações. No México foi acolhida pelas irmãs de São José de Leon. O esclarecimento da situação só veio à luz décadas depois com a democracia quando foram expostos os documentos com as acusações e os trâmites de recusa por parte dos militares primeiro de exilar a Madre e depois a recusa em reconhecer a inocência dela diante dos fatos.
Com o fim do regime a Madre Maurina voltou ao Brasil em 1985, faleceu em 2011 no convento de Araraquara.
Dom Frei Felício e madre Maurina, ao lado de tantos outros personagens, como Frei Beto, Frei Tito, D. Paulo Evaristo Arns, viveram tempos difíceis da História do Brasil, que deixaram marcas profundas na sociedade e dentro da Igreja. O processo histórico, ao olhar para o ado, busca o que escolhemos carregar para o futuro e deixar como um legado para as gerações seguintes. Que este texto em memória de madre Maurina e D. Frei Felício possa nos trazer uma reflexão a respeito de um período que não devemos esquecer, mas aprender as lições que nos foram deixadas pelo legado desses grandes personagens da História da Igreja de Ribeirão Preto.
REFERÊNCIAS
BOTOSSO, M. A guerrilha ribeirão-pretana: história de uma organização armada revolucionária. 2001. 126 f. Dissertação (Mestrado), Unesp, Franca.
FICO, C. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. 3. ed. São Paulo: Record, 2004.
GOMES, S.; SILVEIRA, M. B. da. A coragem da inocência de Madre Maurina Borges da Silveira. Brasília: ABAP, 2014.
POSIÇÃO do clero arquidiocesano de Ribeirão Preto. Sedoc, v. 2, fasc. 6, p. 793- 794, dez. 1969.
ZAGHENI, G. A idade contemporânea: curso de história da igreja IV. São Paulo: Paulus, 1999.
Nainôra Maria Barbosa de Freitas
Doutora em História pela Unesp – Franca. Professora de História da Igreja no CEARP – Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto